Home > Work > Min kamp 2 (Min kamp #2)
101 " Mas não consigo perdoar-me. E hei-de ser sempre assim até à morte. Tenho uma grande lista de coisas que fiz mal, de coisas que não devia ter feito. Porque é essa a questão. Não fazer batota, dê lá por onde der. Pode parecer que é um ideal fácil de seguir. E, para alguns, é fácil. Conheço algumas pessoas, não muitas, mas algumas, que fazem sempre o que devem fazer. Que são sempre boas pessoas, pessoas decentes. (..) Quando tens integridade, fazes o que deves fazer. Eu tenho muito pouca, é como se de mim ressumasse sempre qualquer coisa de... enfim, não propriamente de mórbido, mas qualquer coisa de baixo, de adulador, de rasteiro. Quando me vejo numa situação que exige prudência, que toda a gente sabe que exige prudência, carrego a fundo, a direito. E porquê? Porque só penso em mim, só me vejo a mim, transbordo de mim próprio por todos os lados. Sou capaz de ser bom para o outros, mas tenho de o ter decidido antecipadamente. Não me está no sangue. Não faz parte da minha natureza. "
― Karl Ove Knausgård , Min kamp 2 (Min kamp #2)
102 " Não era capaz de me sentar num café: ao fim de poucos segundos, já toda a gente que lá estava me teria invadido, e tudo continuava a ser assim - o olhar das pessoas atingia-me, transtornava-me até ao mais fundo de mim, e cada movimento que eu fizesse, até mesmo o simples folhear um livro, era percebido do mesmo modo pelas outras pessoas, comunicava-lhes a minha estupidez, era como se lhes dissesse: "Olhem para o imbecil que ali está." Portanto, o melhor era continuar a andar, porque, enquanto andava, os olhares desapareciam uns atrás dos ouros, é certo que não paravam de suceder-ser, mas não tinham tempo para se implantar, limitavam-se a passar por mim: Lá vai o imbecil, lá vai o imbecil, lá vai o imbecil. Era um coro que acompanhava os meus passos. Eu eu sabia que nada daquilo fazia sentido, que era tudo uma construção minha, do meu espírito, mas de nada me servia sabê-lo, porque os outros continuavam a incidir-me do mesmo modo, atingiam-me no mais fundo de mim, revolviam-me por dentro, e até mesmo o mais inadaptado de todos esses outros, até o mais horroroso, o mais gordo e o mais desalinhado, até mesmo aquela mulher ali, com a boca aberta e um olhar vazio de idiota, todos eles podiam dizer quando me viam que havia em mim qualquer coisa que não batia certo. "
103 " ... I suppose I understood that I’ve always been on the other side, always been the one to help, the one to understand, the one to give . . . Not unconditionally of course, but in the main. My brother when we were growing up, my father and also my mother, sometimes. And then everything was turned on its head: when I fell ill I was on the receiving end. I had to accept help. The strange thing is . . . Well, the only moments I’ve had of freedom, where I’ve done what I wanted, were when I was manic. But the freedom was so great I couldn’t handle it. It hurt. There was something good about it though. Finally being free. But of course it couldn’t work. Not like that.’‘No,’ I said.‘What are you thinking about?’‘Two things actually. One has nothing to do with you. But it was what you said about receiving. It struck me that if I’d been in your position I wouldn’t have accepted anything. I wouldn’t have wanted anyone to see me. And definitely not to help me. This is so strong in me you have no idea. Receiving is not for me. And it never will be, either. That’s one thing. The second was wondering what you did when you were manic. I mean, since you connect it with freedom so much. What did you do when you were free?’‘If you won’t receive how can anyone reach you?’‘What makes you think I want to be reached?’‘But that’s no good.’‘Come on, you answer my question first. "
104 " At the age of forty the life you have lived so far, always pro tem, has for the first time become life itself, and this reappraisal swept away all dreams, destroyed all your notions that real life, the one that was meant to be, the great deeds you would perform, was somewhere else. When you were forty you realised it was all here, banal everyday life, fully formed, and it always would be unless you did something. Unless you took one last gamble. "
105 " O mal-estar social que eu próprio podia provocar decorria de uma coisa oposta. Pelo meu lado, deixo que seja sempre a situação a determinar o que acontece, ou porque me abstenho de dizer seja o que for, ou porque tento dizer o que os outros esperam ouvir-me dizer. Ora, dizer o que os outros esperam ouvir-nos dizer é, sem dúvida, uma forma de mentir. Portanto, a diferença entre o comportamento social de Anders e o meu era simplesmente uma questão de grau. Embora o seu afectasse a confiança e o meu afectasse a integridade, o resultado era fundamentalmente o mesmo: uma lenta erosão da alma. "
106 " The next day we moved my things, that is to say all my books, which had now grown to number two and a half thousand titles, a fact which Anders and Geir, who were helping me with the move, cursed from the bottom of their hearts as we shifted the boxes from the lift into the flat. "
107 " Mas passaram-se muitos anos até que eu compreendesse que há também excelentes razões para nos desligarmos das coisas, para não nos fixarmos seja onde for e nos deixarmo a cair, até acabarmos por nos desfazer em pedaços no fundo. "