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1 " INSÔNIAEnvelhecem as horas,Entontecem ponteiroscomo punhais vazando insaciáveis relógios.O sono é um vidroonde se guardam cansaçosde antes de termos nascido.Piso estilhaços desse vidro,tropeçam-me os olhos nas pestanas:um tropel de luzassusta um bando de aves sem asas.A noite, em mim, ganhou diurno vício:uma outra vez,tomei luar na veia. "
― Mia Couto , Tradutor de Chuvas
2 " POEMA DIDÁTICOJá tive um país pequeno,tão pequenoque andava descalço dentro de mim.Um país tão magroque no seu firmamentonão cabia senão uma estrela menina,tão tímida e delicadaque só por dentro brilhava.Eu tive um paísescrito sem maiúscula.Não tinha fundospara pagar um herói.Não tinha panospara costurar a bandeira.Nem solenidade para entoar um hino.Mas tinha pão e esperança para os viventese sonhos para os nascentes.Eu tinha um país pequeno,tão pequeno,que não cabia no mundo. "
3 " A CASASei dos filhospelo modo como ocupam a casa:uns buscam os recantos,outros existem à janela.A uns satisfaz uma sombra,a outros nem o mundo basta.Uns batem com a porta, outros hesitam como se não houvesse saída.Raras vezes, sou pai.Sou sempre todos os meus filhos,sou a mão indecisa no fecho,sou a noite passada entre relógio e escuro.Em mim ecoa a vozque, à entrada, se anuncia: cheguei!E eu sorrio, de resposta: chegou?Mas se nunca ninguém partiu...E tanto em mimdemoraram as esperasque me fui trocando por soalhoe me converti em sonolenta janela.Agora, eu mesmo sou a casa,essa infatigável casaa que meus filhoseternamente regressam. "