3
" Que não iremos de todo sair daqui, porque nos retiveram tanto tempo que o campo de trabalho já é uma aldeia sem torres de vigia e, embora continuemos de facto a não ser russos nem ucranianos, passámos a ser habitantes da terra por habituação. Ou que somos obrigados a ficar aqui durante tanto tempo que já não queremos partir, porque estamos convencidos de que lá em casa já ninguém está à nossa espera, porque há muito tempo vivem lá outras pessoas, porque todos foram expatriados, sabe-se lá para onde, e eles próprios já não encontram lugar em que se sintam em casa. (...)
Ter desejos foi algo que nos tiraram no campo de trabalho. Não se tinha de decidir nada, nem tão pouco se queria. É certo que se desejava voltar para casa, mas deixava-se ficar esse desejo no passado, entregue à recordação. Não se ousava a nostalgia do futuro, julgava-se que a recordação já era nostalgia. "
― Herta Müller , Todo lo que tengo lo llevo conmigo
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" Antes de ir para o campo de trabalho, estivemos dezassete anos juntos, partilhámos os objectos grandes, como portas, armários, mesas, tapetes. E as pequenas coisas, como pratos e chávenas, saleiros, sabonetes, chaves. E a luz das janelas e dos candeeiros. Eu agora era um transmudado. Conhecíamo-nos uns aos outros como já não somos e nunca mais seremos. Ser estranho em casa é de certeza um fardo, mas estranhar-se toca as raias impossíveis do fardo insustentável. "
― Herta Müller , Todo lo que tengo lo llevo conmigo
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" Vindo da aldeia dos russos, um bando de aves voava como um colar cinzento em direcção ao campo de trabalho. Não sei se as aves guinchavam lá em cima na aberta, ou no véu palatino da minha boca. Também não sei se guinchavam com os bicos, se esfregavam as patas ou se tinham ossos sem cartilagem nas asas.
De repente, arrancou-se um pedacinho do colar e dividiu-se em muitos bigodes. Três deles voaram por baixo do barrete da sentinela e meteram-se-lhe pela testa, na torre de vigia de trás. Ficaram lá muito tempo. Só quando me virei outra vez, do outro lado, no portão da fábrica, voaram por baixo do barrete, saindo-lhe pela nuca. A espingarda oscilou, o soldade permaneceu estático. Pensei que fosse de madeira e a espingarda de carne.
Eu não queria trocar com a sentinela da torre, nem com o colar de aves. (...) Mas queria trocar. Queria, acho eu, ser a espingarda. "
― Herta Müller , Todo lo que tengo lo llevo conmigo