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" A história de uma família parece mais com um mapa topográfico do que com um romance, e uma biografia é a soma de todas as eras geológicas que você atravessou. Escrever-se a si mesma significa lembrar que você nasceu com raiva e que foi um despejo de lava denso e contínuo, antes que sua crosta endurecesse e rachasse para deixar aflorar uma espécie de amor, ou que a força inútil do perdão viesse polir e achatar qualquer formação de um vale em você. Reler-se a si mesma significa inventar aquilo pelo que você passou, detectar cada estrato de que está composta: os cristais de júbilo ou de solidão no fundo, as consequências de uma lembrança que evaporou, tudo o que foi escavado e depois inundado, apenas para se dar conta de que não é verdade que o tempo cura — há uma fratura que jamais será preenchida. A única coisa que o tempo faz é carregar consigo o pó e ervas daninhas, de modo que aquela fissura seja coberta até se transformar numa paisagem distinta, distante, quase de fábula, na qual se fala um idioma que não se conhece mais, tão verossímil quanto o élfico. Paisagens sobre as ruinas da sua família, e você se dá conta de que algumas palavras foram apagadas, mas outras salvas, algumas desapareceram, enquanto outras farão sempre parte da sua reverberação, e então finalmente se chega à margem do seu pai e da sua mãe, depois de anos acreditando que morrer ou enlouquecer fosse o único jeito de estar à altura deles. É lá então que você entende que tudo no seu sangue é uma chamada e você é somente eco de uma mitologia pregressa. "
― Claudia Durastanti , La straniera
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" Um tempo atrás eu acreditava que falar de seres humanos era como falar de edifícios em colapso, de garotas que creem ser arranha-céus destinados a serem implodidos por um ataque terrorista interior. Mas quando penso em certas existências, só me vêm à mente geopolíticas que não foram atualizadas, antigas versões de WAR empoeiradas, onde houve nações devastadas pela dor, mas nas quais havia também fortalezas impenetráveis, condenadas a resistir, convencidas de que o assédio passaria, até que não restaram somente elas, e o corpo circunstante não se tornou um país no qual eram as únicas ditadoras. "
― Claudia Durastanti , La straniera
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" O caminho dentro de uma metáfora pode ser mais lento, tortuoso ou imprevisível para um leitor surdo, mas isso é assim para tantas outras pessoas: ainda que confiemos num arquivo compartilhado de símbolos quando lemos uma obra de arte, as nossas traduções interiores desses símbolos variam. Diante das provas feitas para medir competências textuais de uma pessoa, também penso que há um erro se um garoto surdo perde todo o simbolismo de O Mágico de Oz, mas esse erro me escapa. Se uma metáfora é um incidente, uma revelação, um acidente, acabo por recolher sempre os mesmos pedaços de vidro estilhaçados. Nunca conquisto nem ganho um novo fragmento, me limito a participar da constante reciclagem da beleza. "
― Claudia Durastanti , La straniera
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" Somos uma espécie condenada a evoluir, ainda assim acreditamos que uma relação, em algum momento, nos detém, que há uma teleologia do encontro com uma pessoa, com certa pessoa. Como se ser um casal nos levasse para outra dimensão, na qual não pudéssemos nos tornar mais perfeitos ou luminosos do que já somos, um espaço protegido no qual não teríamos vontade de trair a pessoa que conhecemos e ir para a cama com uma que nunca nos será familiar. Ter um vínculo desse tipo quando se é jovem não significa antecipar o tempo, mas sacudi-lo; desmistifica-se a ideia de maturidade como um estágio definitivo da existência, antes dos outros. É uma rebelião íntima diante da lei de que iremos crescer e nos tornar pessoas satisfeitas e imutáveis, quando sempre fomos pontos de partida e repartida; rasgos, suturas e cortes. "
― Claudia Durastanti , La straniera
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" In realtà, è la metafora della corsa a costituire un problema, è un cliché difficile da abbandonare: essere cresciuta in povertà non significa avere per forza voglia di arrivare da qualche parte, o dove tutti pensano che tu voglia andare. Può significare anche stare ferma sul posto, se è un posto accogliente, desiderato e che garantisce tutte le risorse necessarie. Può significare avere fame, ma non fame di successo, nel modo in cui viene inteso dalla maggior parte delle persone. La stessa idea di mettere “fame” e “successo” nella stessa frase ha un che di farsesco, da secolo scorso. Lì in attesa ai nastri di partenza, una ragazza può pure decidere di
andarsene nei boschi. La sua vita può essere anche un bellissimo spreco; eguaglianza significa metterla nelle condizioni di diventare un’astronauta, se vuole, ma anche darle la possibilità di esercitare l’ozio di chi non sa ancora bene cosa vuole fare, e scrive articoli nel frattempo, senza una casa in eredità lasciatale dai nonni. Eguaglianza significa che i figli degli operai non diventano solo dottori e avvocati, ma anche scrittori sotto-occupati e pittori in attesa di scoprire se hanno talento. "
― Claudia Durastanti , La straniera
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" Em outra circunstância, na qual me convenci de que viveria de arte e desespero, da proximidade com um homem: 'Vocês contaram um para o outro seus passados cheios de tragédias, se sentiram melhor com isso? Tão especiais, tão parecidos', com uma voz terrível, e eu naquelas ocasiões me sentia sempre mortificada, tímida, tinha vergonha, mas naqueles comentários cruéis, com frequência verdadeiros, sentia também uma pulsação fortíssima de desejo, como se me conhecesse melhor do que qualquer um e antecipasse meu erro, ciente de cada defeito meu e com um controle e poder infinito de domá-lo, e sentia-me de novo conquistada, numa terra russa na qual não se cansava nem para tirar a pistola para um duelo, mas deixava cair a luva, deixava o salão de baile, e depois eu já não o via mais. "
― Claudia Durastanti , La straniera
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" Na escola, no vilarejo, até no ensino médio em um município maior, tudo estava revelado: todos sabiam a quem 'pertencíamos, quanto ganhavam nossos pais — se ganhavam alguma coisa —, que nota tínhamos em italiano e matemática e se havíamos bebido demais numa festa; todos sabiam se beijávamos com ou sem língua, se era permitido ir por cima ou por baixo da camiseta, e quando nos preparávamos para as festas de final de ano ou as de dezoito anos para as quais éramos convidadas, não importava o quanto estivéssemos maquiadas ou quais roupas imprevisíveis usássemos, porque, assim que passávamos pela porta, toda a fumaça do palco desaparecia rapidamente, nunca havia um desconhecido com quem conversar, podíamos nos apaixonar só pelo hábito, os amigos de infância eram reciclados como amantes, e, por virada da sorte, às vezes, de pequena vendedora de fósforos nos tornávamos a garota mais bonita e popular do momento — mas não durava mais do que algumas semanas. "
― Claudia Durastanti , La straniera