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1 " O mistério adensa-se. Costuma escrever-se com ironia esta frase que em tempos deve ter sido pensada seriamente porque é apropriada: um mistério, qualquer que ele seja, é como o nevoeiro, a água, o fumo, ou seja, é um fenómeno da ordem do líquido ou do gasoso, não do sólido. Um mistério não tem forma fixa, tem somente mais ou menos densidade, quer dizer, mais ou menos existência. É evidente que um mistério pouco denso não é nada misterioso. "
― Paulo Varela Gomes , Hotel
2 " Joaquim Heliodoro ficou surpreendido com o seu próprio desinteresse pelo mistério dos Teulier e da escada secreta e, ao comparar o alívio resultante de tal desinteresse com o sentimento de convalescença feliz que experimenta um viciado quando consegue abdicar do seu vício, ao menos momentaneamente, julgara localizar na curiosidade o coração escondido da sua psique, e na fantasia ou na narração o seu mecanismo de funcionamento. "
3 " E com esta conclusão, acrescida à ideia de prosseguir o inquérito aos movimentos e hábitos de Joaquim Heliodoro, o espírito de Manuela entra em paz. Se fosse mais atrevida ou corajosa no exame de suas motivações, descobriria que o mistério que o mistério que Joaquim Heliodoro constitui para ela é inseparável daquele que ela própria constitui, porque o bispo Berkeley, pai do idealismo solipsista, a que chamava "imaterialismo", tinha uma espécie de razão metafórica ao sustentar que só o Eu existe e tudo o resto é uma função ou ilusão do Eu, significando isto, para o caso que aqui importa, que Joaquim Heliodoro só pode ser uma figura intrigante para aqueles que se assemelhem a ele no todo ou em parte, ou com ele se identifiquem. Ninguém se interessa por estranhos, tal como ninguém quer descobrir aquilo de que ainda não tem qualquer suspeita ou aquilo que não lhe desperta qualquer vontade interior. "
4 " Ao estudar a literatura romântica portuguesa, a mãe convencera-o a escrever um ensaio sobre Eurico o Presbítero, explicando-lhe, com palavras que eram sempre surpreendentes pelo contraste enter a delicadeza da voz que as pronunciava e a veemência apaixonada daquilo que diziam, que o tema romântico por excelência é a solidão do homem perante Deus, a Natureza e os outros homens, e que por isso o romantismo é a adolescência do mundo, a primeira vez na história em que emergem vozes e espíritos aos quais ninguém podia ensinar nada e que não podiam imitar ou emular ninguém porque a violência e o desequilíbrio dos seus sentimentos não se revia em qualquer experiência alheia. Foi nessa ocasião que lhe recitou pela primeira vez o texto “Sabeis o que é esse despertar do poeta?” e lhe perguntou se não era exactamente aquilo que sentia: que ninguém o podia compreender, nenhuma alma se erguia à sua altura, que a vileza e a decepção moravam no coração do destino, e que só uma solidão vertical frente ao bramido do mar ao rugido dos ventos poderia dar conta do tumulto que lhe perturbava o espírito. "
5 " Os prazeres privados e de certo modo solitários para os quais criara uma arquitectura dependiam a tal ponto do dispositivo arquitectónico que se podia dizer que a máquina se tornara mais importante do que aquilo que produzia, ou, como sucede nas religiões iconófilas, as imagens fixavam mais fortemente a fantasia e a fé dos crentes do que os valores imateriais que deveriam representar, uma analogia cuja ascendência filosófica, de Feuerbach e Marx, Joaquim Heliodoro ignorava tão completamente quanto o desenvolvimento que fora imprimido à ideia por Freud e pelos seus seguidores, ao discutirem o conceito de objecto-fetiche, primeiro como substituição de um objecto ausente, depois como fixação num objecto presente mas dotado de um significado libidinal pela sua utilização. Joaquim Heliodoro sabia muito pouco destas coisas, mas, enquanto poeta, não queria que o desvelamento dos seus fetiches o fizesse despertar. "
6 " A vida é muito menos cheia de prosápia do que a morte. É uma espécie de maré pacífica, um grande e largo rio. Na vida é sempre manhã e está um tempo esplêndido. Ao contrário da morte, o amor, que é o outro nome da vida, não me deixa morrer às primeiras: obriga‑me a pensar nas pessoas, nos animais e nas plantas de quem gosto e que vou abandonar. Quando a vida manda mais em mim do que a morte, amo os que me amam, e cresce de repente no meu coração a maré da vida. "
― Paulo Varela Gomes
7 " É verdade que ele pertencia à casa tanto quanto esta lhe pertencia a ele. Não podia, de facto, utilizar a casa sem que outros a utilizassem também, empregados e hóspedes. Todos, incluindo ele, eram peças da maquinaria pesada e lenta da casa, do seu existir-em-decadência, todos, incluindo ele, estavam ali para velar pela casa, para impedir que a morte – que a todas as horas a ameaçava em cada pedaço de cal que se soltava, cada vidraça que rachava, cada telha que se partia, cada cama que cedia ao peso – pudesse irromper pelas paredes e vãos, pelos pavimentos e tectos, como um incêndio sem chamas, feito apenas de minutos, horas, dias, meses e anos. "
8 " De facto a realidade nunca é tão interessante como a ficção, e é sempre menos dramática. "
9 " porque o segredo, concluiu ela, é como uma lâmpada: só nos afecta quando não acende. "
10 " O resto do dia e da noite decorreram, para ele e para Manuela, num estado de quase alucinação em que sentiam ambos, embora cada um à sua maneira, que eram personagens de um romance do qual não podiam sair, cumprindo um enredo escrito talvez por Margareta. "