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" estamos para aqui todos fascistas, com pensamentos de um fascismo indelével a achar que antigamente é que era bom, este é o fascismo remanescente que vem das saudades, sabe, acharmos que salazar é que arranjaria isto, que ele é que punha esta juventude toda na ordem, é natural, porque temos medo destes novos tempos, não são os nossos tempos, e precisamos de nos defendermos, quando dizemos que antigamente é que era bom estamos só a ter saudades, queremos na verdade dizer que antigamente éramos novos, reconhecíamos o mundo como nosso e não tínhamos dores de costas nem reumatismo. é uma saudade de nós próprios, e não exactamente do regime e menos ainda de salazar. eu escutava o meu colega silva e não sabia o que pensar, num momento dizia que éramos comunistas, no outro já éramos fascistas, e eu perguntava, isso faz de nós bons homens, ele regozijava, claro que somos bons homens, ó senhor silva, não somos por natureza inquinados de política nenhuma, temos de tudo um pouco mas, sobretudo, temos saudades, porque somos velhos e quando novos a robustez e a esperança curavam-nos de muita coisa, o fascismo dos bons homens, como diz, perguntou o senhor pereira, o fascismo dos bons homens, é o que para aí abunda, já quase não faz mal a ninguém e não é para prejudicar, mas é um sentimento que fica escondido, à boca fechada, porque sabemos que talvez não devesse existir, mas existe porque o passado, neste sentido, é mais forte do que nós. quem fomos há-de sempre estar contido em quem somos, por mais que mudemos ou aprendamos coisas novas. "
― Valter Hugo Mãe , A Máquina de Fazer Espanhóis
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" sabe o que é que afinal foi mesmo uma máquina para roubar a metafísica aos homens, perguntou aquilo e suspendeu--se no nosso ar, expectante, à espera de esclarecimento, o estupor da ditadura, a ditadura é que nos quis pôr a todos rasos como as tábuas, sem nada lá dentro, apenas o andamento quase mecânico de cumprir uma função e bico calado, a ditadura, colega silva, a ditadura é que foi uma terrível máquina de roubar a metafísica aos homens "
― Valter Hugo Mãe , A Máquina de Fazer Espanhóis
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" e eu respondi, coitado do esteves, coitado do nosso esteves. como se o esteves fosse novo, e nós, eu e o silva da europa, e o senhor pereira e mais o anísio dos olhos de luz, fôssemos uma família, uma outra família pela qual eu não poderia ter esperado. unida sem parecenças no sangue, apenas no destino de distribuirmos a solidão uns pelos outros. distribuída assim, a solidão de cada um entregue ao outro, era tanto quanto família. era uma irmandade de coração, uma capacidade de ser leal como nenhuma outra. [...] nunca eu teria percebido a vulnerabilidade a que um homem chega perante outro. nunca teria percebido como um estranho pode nos pertencer, fazendo-nos falta. não era nada esperada aquela constatação de que a família também vinha de fora do sangue, de fora do amor ou que o amor podia ser outra coisa, como uma energia entre pessoas, indistintamente, um respeito e um cuidado pelas pessoas todas. "
― Valter Hugo Mãe
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" Ando, a vida inteira, sobretudo à caça de satisfação para uma angústia constante que se prende a tudo, a ter e não ter, sentir que nunca nada está completo, que nunca tempo algum é suficiente. Falta-me tempo, quero mais, e quero gente e quero corresponder, pertencer genuinamente a cada lugar e melhorar os lugares e melhorar tudo, e ser um pouco feliz no meio de tanta coisa, tanta coisa que nem entendo, não chego a conhecer, não sou sequer inteligente o bastante para as aventuras todas. E digo angústia porque fica no ar um lado mais existencial e filosófico do que a constatação sempre tão violenta da tristeza, alguma tristeza, e a vida faz-se de andar entre alguma tristeza e procurar saída. "
― Valter Hugo Mãe , Contra mim