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" E porque é que só sei gostar, perguntou-se examinando as bolhas de gás pegadas à parede do vidro, porque é que só sei dizer que gosto através dos rodriguinhos de perifrases e metáforas e imagens, da preocupação dealindar, de pôr franjas de crochet nos sentimentos, de verter a exastação e a angustia na cadencia pindérica do fadomenor, alma a gingar, piegas, à Correia de Oliveira de samarra, se tudo isto é limpo, claro, directo, sem precisão de bonitezas, enxuto como uma Giacometti numa sala vazia e tão simplesmente eloquente como ele: depor palavras aos pés de uma escultura equivale às flores inuteis que se entregam aos mortos ou à dança da chuva em torno de um poço cheio: chiça para mim e para o romantismo meloso que me corre nas veias, minha eterna dificuldade em proferir palavras secas e exactas como pedras "
― António Lobo Antunes , Memoria de elefante
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" Amo-te tanto que te não sei amar, amo tanto o teu corpo e o que em ti não é o teu corpo que não compreendo porque nos perdemos se a cada passo te encontro, se sempre ao beijar-te beijei mais do que a carne de que és feita, se o nosso casamento definhou de mocidade como outros de velhice, se depois de ti a minha solidão incha do teu cheiro, do entusiasmo dos teus projectos e do redondo das tuas nádegas, se sufoco da ternura de que não consigo falar, aqui neste momento,
amor, me despeço e te chamo sabendo que não virás e desejando que venhas do mesmo modo que, como diz Molero, um cego espera os olhos que encomendou pelo correio. "
― António Lobo Antunes , Memoria de elefante
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" (...) de loucura que é afinal a nossa e da qual nos protegemos a etiquetá-la, a comprimi-la de grades, a alimentá-la de pastilhas e de gotas para que continue existindo, a conceder-lhe licença de saída ao fim-de-semana e a encaminhá-la na direcção de uma «normalidade» que provavelmente consiste apenas no empalhar em vida. Quando se diz, considerou ele de mãos nos bolsos a observar os serafins do bagaço, que os psiquiatras são malucos está se tocando sem saber o centro da verdade: em nenhuma especialidade como nesta se topam seres de crânio tão em saca-rolhas, tratando-se a si mesmos através das curas de sono impingidas por persuasão ou à força aos que os procuram para se procurarem e arrastam de consultório em consultório a ansiedade da sua tristeza, como um coxo transporta a perna manca de endireita em endireita, em busca de um milagre impossível. Vestir as pessoas de diagnósticos, ouvi-las sem as escutar, ficar de fora delas como à beira de um rio de que se desconhecem "
― António Lobo Antunes , Memoria de elefante
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" (...) de loucura que é afinal a nossa e da qual nos protegemos a etiquetá-la, a comprimi-la de grades, a alimentá-la de pastilhas e de gotas para que continue existindo, a conceder-lhe licença de saída ao fim-de-semana e a encaminhá-la na direcção de uma «normalidade» que provavelmente consiste apenas no empalhar em vida. Quando se diz, considerou ele de mãos nos bolsos a observar os serafins do bagaço, que os psiquiatras são malucos está se tocando sem saber o centro da verdade: em nenhuma especialidade como nesta se topam seres de crânio tão em saca-rolhas, tratando-se a si mesmos através das curas de sono impingidas por persuasão ou à força aos que os procuram para se procurarem e arrastam de consultório em consultório a ansiedade da sua tristeza, como um coxo transporta a perna manca de endireita em endireita, em busca de um milagre impossível. Vestir as pessoas de diagnósticos, ouvi-las sem as escutar, ficar de fora delas como à beira de um rio de que se desconhecem as correntes, os peixes e o côncavo de rocha de que nasce, assistir ao torvelinho da enchente sem molhar os pés, recomendar um comprimido depois de cada refeição e uma pílula à noite e ficar saciado com esse feito de escuteiro: o que me faz pertencer a este clube sinistro, meditou, e sofrer quotidianamente remorsos pela debilidade dos meus protestos e pelo meu inconformismo conformado, e até que ponto a certeza de que a revolução se faz do interior não funciona em mim como desculpa, autoviático para prosseguir cedendo? "
― António Lobo Antunes , Memoria de elefante
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" E aqui estou eu, disse-se o médico, a colaborar não colaborando com a continuação disto, com a pavorosa máquina doente da saúde mental trituradora no ovo dos germenzinhos de liberdade que em nós nascem sob a forma canhestra de um protesto inquieto, pactuando mediante o meu silêncio, o ordenado que recebo, a carreira que me oferecem: como resistir de
dentro, quase sem ajuda, à inércia eficaz e mole da psiquiatria institucional, inventora da grande linha branca de separar a normalidade da «loucura» através de uma
complexa e postiça rede de sintomas, da psiquiatria como grosseira alienação, como vingança dos castrados contra o pénis que não têm, como arma real da burguesia a que
por nascença pertenço e que se torna tão difícil renegar, hesitando como hesito entre o imobilismo cómodo e a revolta penosa, cujo preço se paga caro porque se não tiver pais quem virá querer, à roda, perfilhar-me? "
― António Lobo Antunes , Memoria de elefante
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" Nunca topei corpo para mim como o teu, disse-se o médico vertendo a cerveja na caneca, tão à medida das minhas humanas e desumanas medidas, as autênticas e as inventadas que nem por o serem o são menos, nunca topei uma tão grande e boa capacidade de encontro com outra pessoa, de absoluta coincidência, de se ser entendido sem falar e de entender o silêncio e as emoções e os pensamentos alheios, que me foi sempre milagre o termo-nos conhecido na praia onde te conheci, magra, morena, frágil, o teu antiquíssimo perfil sério pousado nos joelhos dobrados, o cigarro que fumavas, a cerveja (igual a esta) no banco à tua ilharga, a tua perpétua atenção de bicho, os muitos anéis de prata dos teus dedos, minha mulher
dele sempre e minha única mulher, minha lâmpada para o escuro, retrato dos meus olhos, mar de Setembro, meu amor. "
― António Lobo Antunes , Memoria de elefante
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" O sinal passou a verde e imediatamente o táxi por trás dele buzinou, imperioso: porque raio é que os choferes de táxi, perguntou-se, são as criaturas mais azedas do mundo? E também homens sem rosto, reduzidos a nuca
e ombros plantados como pregos no banco da frente, e ocasionalmente a um par de olhos vazios no quadradinho do retrovisor, órbitas de vidro inexpressivo como os dos
bichos das noras. Talvez que circular por Lisboa o dia inteiro atire as pessoas para uma espécie de epilepsia explosiva, talvez que esta cidade de raiva e nojo a quem por obrigação a percorre em todos os sentidos, talvez que o próprio do indivíduo seja a exaltação assassina em franjas e andemos por aqui, nós os comedidos, a fingir amabilidade que não temos "
― António Lobo Antunes , Memoria de elefante
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" A noite das ruas e das praças, nessa sexta-feira, aparentava-se para o médico às noites de infância quando, deitado, escutava, vindo do escritório, os tais duetos de ópera que lhe chegavam à cama sob a forma de discussões apavorantes, o pai-tenor e a mãe-soprano a insultarem-se aos gritos num fundo tétrico de orquestra que o escuro ampliava até um deles enforcar o outro num nó corredio de um dó sustenido, a que se seguia o terrível silêncio das tragédias consumadas: alguém jazia na carpete numa poça de colcheias, assassinado a golpes de bemóis, e maestros gatos-pingados, vestidos de preto, subiriam em breve a escada carregando um caixão que se assemelhava a um estojo de contrabaixo, com o crucifixo de duas batutas cruzadas no tampo. "
― António Lobo Antunes , Memoria de elefante