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1 " uma vez, numa sessão de terapia com uma psicóloga, falei-lhe da minha persistente melancolia. Como se tivesse raiva dela, como se fosse contra esse sentimento. Como se o facto de ela andar comigo desde sempre fosse motivo para a ressentir. A psicóloga ficou calada enquanto eu falava, contando-lhe as poucas recordações que tinha da infância, e de como estavam impregnadas dessa tristeza. O meu avô morreu muito novo, disse-lhe eu, e talvez, sem me dar conta, eu tenha sentido muito a falta dele. Ela chegou-se à frente na cadeira e, de olhos nos meus, confessou que também se sentira triste na infância, e que eu, por mais anos que tivesse, teria sempre essa melancolia comigo, sempre, talvez houvesse períodos de tréguas, mas ela continuaria a arder no meu chão, podia amaldiçoá-la e tentar desenterrá-la das entranhas, que ela não era uma coisa a mais em mim, era eu, parte daquilo que sou. Abdicar não é ficar sem, é ficar com, na ausência de. "
― , Granta Portugal 10: Revoluções
2 " Uma das perguntas mais difíceis é a da origem da obra de arte. Talvez seja impossível dar uma resposta - porque seria equivalente a saber da génese de um oceano, ou como aconteceu a Lua. E, no entanto, talvez não exista pergunta mais vezes formulada, pensada, ou por dizer, do que essa. Qual é a origem da obra? Ou, por outras palavras: qual é a urgência de produzir o inútil? Talvez muitos artistas ou escritores ( ou "criadores", usando o léxico mais actual) se sintam úteis apenas e quando fazem aquilo que é inútil, ou seja, aquilo do qual nada depende, aquilo que abre espaços e brechas entre as camadas já constituídas da realidade necessária, objectiva. "