1
" Um rio, Kevin, está ao mesmo tempo na nascente e na foz. A vida também é assim, mas nós imaginamos que é um barco a descer o rio, um humilde pescador que por vezes tenta remar contra a corrente, mas é impossível vencê-la. Porém, nós somos o rio, que imagem tão gasta Kevin, mas deve ser isso que somos. Ao mesmo tempo na nascente e na foz, moribundos e nascituros ao mesmo tempo, no útero e enterrados ao mesmo tempo, e no entanto sempre diferentes de nós mesmos, porque a água é sempre outra, a nascente está sempre a mudar, a foz está sempre a mudar, o nosso passado também, o nosso destino também, somos esta imagem tão gasta pelos poetas, pelos cantores, é isso mesmo, Kevin, uma alegoria velha, somos o tal rio, o tal lugar-comum. "
― Afonso Cruz , Flores
3
" - A voz é uma destino, um lugar onde pousar a cabeça, é o nosso verdadeiro corpo. Quando cantamos, desaparecemos, passamos a ser a ária, o nosso esqueleto é o ritmo, o pâncreas é um ré diminuto, os braços são melodia, os pulmões harmonia, a bexiga compassos, passamos a ser voz, encontramos a nossa verdadeira natureza, o canto. É isso que somos na coisa mais essencial, uma canção. Acha que é difícil encontrar o bloco construtor da matéria? Descobrir um quark não é nada comparado com a dificuldade imensa de descobrir a partícula essencial de uma canção. "
― Afonso Cruz , Flores
11
" — Ruga atrás de ruga, uma guerra leva muitos anos a construir, não é só bombardear coisas e vê-las ruir. É preciso alimentar o ódio, cultivá-lo, isso tudo. É como com as plantas, regá-las, amá-las, falar com elas. Esperar que cresçam, que dêem fruto, que sejam belas. A guerra é igual, é um vaso com uma flor. A beleza de tudo está no ódio a florir. "
― Afonso Cruz , Flores
13
" Nos últimos tempos, quando sinto os lábios da Clarisse a tocarem os meus, comprovo que não têm história, já não convocam o primeiro beijo que demos. Creio que, numa relação, o beijo terá sempre de manter a densidade do primeiro, a história de uma vida, todos os pores-do-sol, todas as palavras murmuradas no escuro, toda a certeza do amor. Mas já não é assim. Agora sabem às vacinas que tínhamos de dar à cadela (já morreu), às conversas como diretor da escola, á loiça por lavar, à lâmpada que falta mudar, às infiltrações no tecto, às reuniões de condóminos. Toco levemente os lábios dela e sabe-me à rotina, às finanças, ao barulho da máquina de lavar roupa. Beijamo-nos como quem faz a cama. "
― Afonso Cruz , Flores