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21 " Lêramos sobre a história de umas aves cujo macho, por ser tão equivocado, usava de tudo para atrair uma fêmea mas, mal dos olhos e da cabeça, podia passar um tempo interminável a galar a bosta de vaca no caminho. "
― Valter Hugo Mãe , A Desumanização
22 " Sorri. Havíamos dezembrado, estávamos quase a desinvernar, seria uma mulher comum, sem remorso, apenas o destino em branco. "
23 " Os livros eram ladrões. Roubavam-nos do que nos acontecia. Mas também eram generosos. Ofereciam-nos o que não nos acontecia. "
24 " Punham-se à espreita das águas a perceber se havia movimentos suspeitos. Quase todos queriam ver monstros. Ninguém se convencia de que os mares eram só para animais de clara ciência. Alguns juravam ter visto cabeças levantadas, feitas de dez olhos e bocas de mil dentes. Monstros oceânicos. Viam o oceano como sangue de cristal. Balanceava diante de nós sinuoso, muito belo, mas carregava-se de perigos e sonhava com afogar-nos a todos. O oceano desceu das veias puras de deus. Dizia um velho. Nas veias puras de deus vivem parasitas que são monstros. "
25 " Os livros eram ladrões. Roubavam-nos do que nos acontecia. "
26 " Las palabras son objetos delgados incapaces de contener el mundo. Las usamos por pura ilusión. Nos dejamos engañar así para no perecer de inmediato, conscientes de la incapacidad de comunicar y, por consiguiente, de la imposibilidad de la belleza. Todas las lagunas del mundo dependen de que seamos, al menos, dos. Para que uno vea y el otro escuche. Sin un diálogo no hay belleza y no hay la guna. La esperanza en la humanidad, tal vez por ingenua convicción, está en la creencia de que la persona a quien se pide que escuche lo haga por confianza. Es lo que todos anhelamos. Que crean en nosotros. Algo que decimos se toma por verdadero porque simplemente lo decimos. "
27 " O inferno não são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura pelo engenho que tiver e perece como um atributo indiferenciado do planeta. Perece como uma coisa qualquer. "
28 " Foram dizer-me que a plantavam. Havia de nascer outra vez, igual a uma semente atirada àquele bocado muito guarda de terra. A morte das crianças é assim, disse a minha mãe. O meu pai, revoltado, achava que teria sido melhor haverem-na deitado à boca de deus. Quando começou a chover, as nossas pessoas arredadas para cada lado, ainda vi como ficou ali sozinho. Pensei que ele escavaria tudo de novo com as próprias mãos e andaria montanha acima até ao fosso medonho, carregando o corpo desligado da minha irmã.Éramos gémeas. Crianças espelho. Tudo em meu redor se dividiu por metade com a morte. "
29 " Chamávamos-lhe a boca de deus porque era um poço infinito que nos servia de sentença para cada coisa. O que para ali atirássemos ficava tão só na imaginação, essa morte de que éramos sempre admiravelmente capazes. "
30 " Chamávamos-lhe deus ou Islândia sem ter como atribuir a cada nome um significado. As palavras eram inúteis para abordar algo que estava proibido à pequenez humana. "
31 " Estar morto deve ser inteligente. A morte deve ser pura inteligência. Não acredito que existam mortos burros. Deus não ia guardar paciência para ter com ele almas burras. O corpo é um traste. A alma deve ser incrível. "
32 " O meu pai declarou: a Islândia pensa. A Islândia é temperamental, imatura como as crianças, mimada. Tem uma idade geológica pueril. É, no cômputo do mundo, infante. Por viver a infância, decide com muito erro, agressiva e exuberantemente. "
33 " Prestávamos atenção às palavras para sabermos como eram ditas as coisas. Porque alguns livros pareciam perfumar a linguagem, outros sujavam-na e outros ignoravam-na. Os livros podiam ser atentos ou desatentos ao modo como contavam. Nós, inspeccionando muito rigorosamente, achávamos melhores aqueles que falavam como se inventassem modos de falar. Para percebermos melhor o que, afinal, era reconhecido mas nunca fora dito antes. Os melhores livros inauguravam expressões. Diziam-nas pela primeira vez como se as nascessem. Ideias que nasciam para caberem nos lugares obscuros da nossa existência. Andávamos como pessoas com luzes acesas dentro. As palavras como lâmpadas na boca. Iluminando tudo no interior da cabeça. (...) As palavras deixavam-nos mágicos. "
34 " Chegara a minha tia. (…) Chegara igualmente solteirona e larga como uma mulher que comera um urso sozinha. Ressonava como se o urso ainda estivesse a refilar dentro dela, reclamando que o deixasse sair. "
35 " Os santos aparecem, os demónios assombram. "