Home > Work > Capitães da Areia
41 " João José, o Professor, desde o dia em que furtara um livro de histórias numa estante de uma casa da Barra, se tornara perito nestes furtos. Nunca, porém, vendia os livros, que ia empilhando num canto do trapiche, sob tijolos, para que os ratos não os roessem. Lia-os todos numa ânsia que era quase febre. "
― Jorge Amado , Capitães da Areia
42 " Apelidaram-no de Professor porque num livro furtado ele aprendera a fazer mágicas com lenços e níqueis e também porque, contando aquelas histórias que lia e muitas que inventava, fazia a grande e misteriosa mágica de os transportar para mundos diversos, fazia com que os olhos vivos dos Capitães da Areia brilhassem como só brilham as estrelas da noite da Bahia. "
43 " No mais fundo do seu coração ele tinha pena da desgraça de todos. E rindo, e ridicularizando, era que fugia da sua desgraça. Era como um remédio. "
44 " O Sem-Pernas sentia que uma angústia o tomava e que era impossível dormir. Se dormisse viriam os maus sonhos da cadeia. Queria que aparecesse alguém a quem ele pudesse torturar com dichotes. Queria uma briga. Pensou em ir acender um fósforo na perna de um que dormisse. Mas quando olhou da porta do trapiche, sentiu somente pena e uma doida vontade de fugir. E saiu correndo pelo areal, correndo sem fito, fugindo da sua angústia. "
45 " Boa-Vida achava besteira sair da Bahia, onde, quando crescesse, seria tão fácil viver uma boa existência de malandro, navalha na calça, violão debaixo do braço, uma morena para derrubar no areal. Era a existência que desejava ter quando se fizesse completamente homem. "
46 " Ia devagar, como se carregasse um peso dentro de si, ia como que curvado por dentro. "
47 " Pedro Bala também só tinha quinze anos, mas há muito tempo conhecia não só o areal e os seus segredos, como os segredos do amor das mulheres. Porque se os homens conhecem esses segredos muito antes que as mulheres, os Capitães da Areia os conheciam muito antes que qualquer homem. "
48 " O sol deixava cair sobre as ruas uma claridade macia, que não queimava, mas cujo calor acariciava como a mão de uma mulher. "
49 " Pirulito vira há poucos dias um frade alemão que descrevia o inferno num sermão na igreja da Piedade. Nos bancos, homens e mulheres recebiam as palavras de fogo do frade como chicotadas no lombo. O frade era vermelho e de seu rosto pingava o suor. Sua língua era atrapalhada e dela o inferno saía mais terrível ainda, as labaredas lambendo os corpos que foram lindos na terra e se entregaram ao amor, as mãos que foram ágeis e se entregaram ao furto, ao manejo do punhal e da navalha. Deus no sermão do frade era justiceiro e castigador, não era o Deus dos dias lindos do padre José Pedro. Depois explicaram a Pirulito que Deus era a suprema bondade, a suprema justiça. E Pirulito envolveu seu amor a Deus numa capa de temor a Deus e agora vivia entre os dois sentimentos. "