6
" As massas conservaram dele somente a imagem, nunca a Idéia. Elas jamais foram atingidas pela Idéia de Deus, que permaneceu um assunto de padres, nem pelas angústias do pecado e da salvação pessoal. O que elas conservaram foi o fascínio dos mártires e dos santos, do juízo final, da dança dos mortos, foi o sortilégio, foi o espetáculo e o cerimonial da Igreja, a imanência do ritual - contra a transcendência da Idéia. Foram pagãs e permaneceram pagãs à sua maneira, jamais freqüentadas pela Instância Suprema, mas vivendo das miudezas das imagens, da superstição e do diabo. Práticas degradadas em relação ao compromisso espiritual da fé? Pode ser. Esta é a sua maneira, através da banalidade dos rituais e dos simulacros profanos, de minar o imperativo categórico da moral e da fé, o imperativo sublime do sentido, que elas repeliram. Não porque não pudessem alcançar as luzes sublimes da religião: elas as ignoraram. Não recusam morrer por uma fé, por uma causa, por um ídolo. O que elas recusam é a transcendência, é a interdição, a diferença, a espera, a ascese, que produzem o sublime triunfo da religião. Para as massas, o Reino de Deus sempre esteve sobre a terra, na imanência pagã das imagens, no espetáculo que a Igreja lhes oferecia. Desvio fantástico do princípio religioso. As massas absorveram a religião na prática sortílega e espetacular que adotaram. "
― Jean Baudrillard , In the Shadow of the Silent Majorities
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" E é esse espectro socialista de segunda mão que hoje ronda a Europa. Nós vagueamos entre os fantasmas do capital, de hoje em diante vaguearemos no modelo póstumo do socialismo. A hiper-realidade de tudo isso não mudará nem um pouco, num certo sentido é nossa paisagem familiar há muito tempo. Estamos doentes de leucemia política, e essa indiferença crescente (estamos atravessados pelo poder sem por ele sermos atingidos, analisamos, atravessamos o poder sem alcançá-lo) é absolutamente semelhante ao tipo de patologia mais moderna: a saber, não a agressão biológica objetiva, mas a incapacidade crescente do organismo de fabricar anticorpos (ou mesmo, como na esclerose em placas, a possibilidade de os anticorpos se voltarem contra o próprio organismo). "
― Jean Baudrillard , In the Shadow of the Silent Majorities
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" O terrorismo não visa fazer falar, ressuscitar ou mobilizar quem quer que seja; não tem prolongamento revolucionário (a esse respeito, seria mais uma contra-performance total, o que se lhe censura violentamente, mas seu problema não está nisso), visa as massas em seu silêncio, silêncio magnetizado pela informação; ele visa, para precipitar sua morte ao acentuá-la, esta magia branca do social que nos envolve, a da informação, da simulação, da dissuasão, do controle anônimo e aleatório, essa magia branca da abstração social pela magia negra de uma abstração maior ainda, mais anônima, mais arbitrária e mais aleatória ainda: a do ato terrorista. "
― Jean Baudrillard , In the Shadow of the Silent Majorities
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" A forma é a de um jogo, não de um sistema de representação - semiurgia e estratégia, não ideologia -, e a sua utilização depende de virtuosismo e não de verdade. (...) O cinismo e a imoralidade da política maquiaveliana estão nisso: não no uso sem escrúpulos dos meios com que se o confundiu na concepção vulgar, mas na desenvoltura com relação aos fins. Pois, Nietzsche o viu bem, é nesse menosprezo por uma verdade social, psicológica, histórica, nesse exercício dos simulacros enquanto tais, que se encontra o máximo de energia política, nesse momento em que o político é um jogo e ainda não se deu uma razão. "
― Jean Baudrillard , In the Shadow of the Silent Majorities
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" Assim é o terrorismo, original e insolúvel somente porque ataca não importa onde, quando e quem, senão seria somente ato de resgate ou de comando militar. Sua cegueira é a réplica exata da indiferenciação absoluta do sistema, que há muito tempo não distingue os fins dos meios, os carrascos das vitimas. Seu ato visa, na indistinção assassina da tomada de reféns, exatamente o produto mais característico de todo o sistema: o indivíduo anônimo e perfeitamente indiferenciado, o termo substituível por qualquer outro. É preciso dizer paradoxalmente; os inocentes pagam o crime de não serem nada, de serem sem destino, de terem sido despossuídos de seu nome por um sistema também anônimo, de que eles se tornaram, então, a mais pura encarnação. São os produtos acabados do social, de uma sociabilidade abstrata doravante mundializada. É nesse sentido, exatamente no sentido em que eles são qualquer pessoa, que são as vítimas predestinadas pelo terrorismo. "
― Jean Baudrillard , In the Shadow of the Silent Majorities
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" O único referente que ainda funciona é o da maioria silenciosa. Todos os sistemas atuais funcionam sobre essa entidade nebulosa, sobre essa substância flutuante cuja existência não é mais social mas estatística, e cujo único modo de aparição é o da sondagem. Simulação no horizonte do social, ou melhor, no horizonte em que o social já desapareceu.
O fato de a maioria silenciosa (ou as massas) ser um referente imaginário não quer dizer que ela não existe. Isso quer dizer que não há mais representação possível. As massas não são mais um referente porque não têm mais natureza representativa. Elas não se expressam, são sondadas. Elas não se refletem, são testadas.
(...)Bombardeadas de estímulos, de mensagens e de testes, as massas não são mais do que um jazigo opaco, cego, como os amontoados de gases estelares que só são conhecidos através da análise do seu espectro luminoso - espectro de radiações equivalente às estatísticas e às sondagens. Mais exatamente: não é mais possível se tratar de expressão ou de representação, mas somente de simulação de um social para sempre inexprimível e inexprimido. Esse é o sentido do seu silêncio. Mas esse silêncio é paradoxal - não é um silêncio que fala, é um silêncio que proíbe que se fale em seu nome. E, nesse sentido, longe de ser uma forma de alienação, é uma arma absoluta.
Ninguém pode dizer que representa a maioria silenciosa, e esta é sua vingança. As massas não são mais uma instância à qual se possa referir como outrora se referia à classe ou ao povo. Isoladas em seu silêncio, não são mais sujeito (sobretudo,não da história), elas não podem, portanto, ser faladas, articuladas, representadas, nem passar pelo “estágio do espelho” político e pelo ciclo das identificações imaginárias. Percebe-se que poder resulta disso: não sendo sujeito, elas não podem ser alienadas - nem em sua própria linguagem (elas não têm uma), nem em alguma outra que pretendesse falar por elas. Fim das esperanças revolucionárias. Porque estas sempre especularam sobre a possibilidade de as massas, como da classe proletária, se negarem enquanto tais. Mas a massa não é um lugar de negatividade nem de explosão, é um lugar de absorção e de implosão. "
― Jean Baudrillard , In the Shadow of the Silent Majorities