1
" Ainda não dissemos sobre a moça da limpeza. Sim, ela é muito magra, vem calada e com uma revolta nos olhos. Uma revolta que faz os ombros de Virginia se levantarem e tensionarem mais um pouco. Ainda que magra, essa mulher se espreme toda para pegar o cesto de lixo sob a mesa, ocupando os mesmos noventa centímetros de cabela de gado que cabem a ambas, e nesse momento a garganta de Virginia trava e ela murmura um tímido agradecimento, um modo de se desculpar pelo fato de aquela pessoa ter de se curvar ao chão para recolher suas sujeiras, suas incompetências, seus pequenos desperdícios. Virginia adoraria dizer-lhe que não compactua com nada ali à sua volta, mas cada vez que ensaiava a frase, a funcionária, treinada, já havia desviado o olhar e saído dali, quase invisível, como sempre. Alguém a viu? "
― , Um Dia Toparei Comigo
4
" Na mesa, uma estação telefônica cibernética, um computador ligado à nuvem de prazos e agendas, e por todo lado fotos de paisagens que ela só vê no seu único mês de vida por ano. Nessa pequena jaula de conforto, Virginia baixa os olhos e se automatiza. Se tivesse possibilidade, ou coragem ou mais ímpeto, Virginia teria sido fotógrafa, ou veterinária ou psicóloga. [...] Por ora, o que importa mesmo é falar da viagem, do único mês do ano em que Virginia se põe viva. Os outros onze meses equivalem à austeridade de Itaquera. "
― , Um Dia Toparei Comigo
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" Criava diálogos de mim para mim, como se eu namorasse a mim mesma. Imperdoável esse outro inventado e suspirado, que por acaso tem corpo e, com certeza, a alma diversa da sonhada. A despeito de todas defesas que a razão erigia, soberba, a fim de desfazer atalhos, enganos e futuros martírios, havia momentos breves, muito breves, em que a alma sonhada colava perfeita sobre a alma real, e a isso podemos chamar felicidade. "
― , Um Dia Toparei Comigo
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" Diziam-nos, com sorrisos automáticos, ele se saiu bem, estamos otimistas. Seu Ramires, aguardamos o senhor para mais sessões de químio. E assim, quase de supetão, ao final da frase, nos meteram um frangalho nas mãos. Aceitamos o frangalho. Pode parecer cruel, mas retirar um pacote de carne, pele e ossos, é como se nos devolvessem a sacola onde dispusemos, na noite anterior, os restos do prato principal e dissessem, não temos como recolher essa substância que deambula entre a vida e a morte, mastiguem mais um pouco a família que lhes resta. Assentamos sua carne, sua pele e seus ossos na cadeira de rodas, e foi dessa maneira que seu Ramires voltou conosco para o predinho de tijolos vermelhos na sua primeira entre-químios. "
― , Um Dia Toparei Comigo
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" Ao fundo, a altura de Deus. Medida das montanhas. E nós, encurvadas. E pensar que eu ainda não conhecia dona Helena. Nem a mim mesma. Nem um pouquinho. Estava amortizada e só. Só isso. Do lado de fora, a Serra dos Órgãos. Incompreensível. Virginia rompeu o silêncio. Estou sentindo o mesmo medo de quando era criança. Inventar uma ocupação nos faria bem, não acha? Que tal se começássemos a procurar? Procurar o quê? O dedo de deus. Você já ouviu falar? É a montanha mais importante da serra. A serra terminou e desistimos desse pedaço de deus. Cruzamos uma estrada maior e estacionamos no primeiro recuo. Outras pessoas também pararam o carro. Em um mirante, mas não se via nada dali. Mesmo assim, elas pareciam convencidas. Perguntei à Virginia, do que você tinha medo quando criança? De que minha mãe tomasse coragem para dizer, eu não te quero. Aí sim, sem premeditar, sem querer, como turistas de primeira viagem, avistamos. O dedo de deus. Que sumiu em instantes no nevoeiro. Não à toa, os homens possuem tão pouca fé. "
― , Um Dia Toparei Comigo