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" Raiz de orvalho

Sou agora menos eu
e os sonhos
que sonhara ter
em outros leitos despertaram

Quem me dera acontecer
essa morte
de que não se morre
e para um outro fruto
me tentar seiva ascendendo
porque perdi a audácia
do meu próprio destino
soltei ânsia
do meu próprio delírio
e agora sinto
tudo o que os outros sentem
sofro do que eles não sofrem
anoiteço na sua lonjura
e vivendo na vida
que deles desertou
ofereço o mar
que em mim se abre
à viagem mil vezes adiada

De quando em quando
me perco
na procura a raiz do orvalho
e se de mim me desencontro
foi porque de todos os homens
se tornaram todas as coisas
como se todas elas fossem
o eco as mãos
a casa dos gestos
como se todas as coisas
me olhassem
com os olhos de todos os homens

Assim me debruço
na janela do poema
escolho a minha própria neblina
e permito-me ouvir
o leve respirar dos objectos
sepultados em silêncio
e eu invento o que escrevo
escrevendo para me inventar
e tudo me adormece
porque tudo desperta
a secreta voz da infância

Amam-me demasiado
as cosias de que me lembro
e eu entrego-me
como se me furtasse
à sonolenta carícia
desse corpo que faço nascer
dos versos
a que livremente me condeno "

Mia Couto , Raiz de Orvalho e Outros Poemas / O Fio das Missangas


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Mia Couto quote : Raiz de orvalho<br /><br />Sou agora menos eu<br />e os sonhos<br />que sonhara ter<br />em outros leitos despertaram<br /><br />Quem me dera acontecer<br />essa morte<br />de que não se morre<br />e para um outro fruto<br />me tentar seiva ascendendo<br />porque perdi a audácia<br />do meu próprio destino<br />soltei ânsia<br />do meu próprio delírio<br />e agora sinto<br />tudo o que os outros sentem<br />sofro do que eles não sofrem<br />anoiteço na sua lonjura<br />e vivendo na vida<br />que deles desertou<br />ofereço o mar<br />que em mim se abre<br />à viagem mil vezes adiada<br /><br />De quando em quando<br />me perco<br />na procura a raiz do orvalho<br />e se de mim me desencontro<br />foi porque de todos os homens<br />se tornaram todas as coisas<br />como se todas elas fossem<br />o eco as mãos<br />a casa dos gestos<br />como se todas as coisas<br />me olhassem<br />com os olhos de todos os homens<br /><br />Assim me debruço<br />na janela do poema<br />escolho a minha própria neblina<br />e permito-me ouvir<br />o leve respirar dos objectos<br />sepultados em silêncio<br />e eu invento o que escrevo<br />escrevendo para me inventar<br />e tudo me adormece<br />porque tudo desperta<br />a secreta voz da infância<br /><br />Amam-me demasiado<br />as cosias de que me lembro<br />e eu entrego-me<br />como se me furtasse<br />à sonolenta carícia<br />desse corpo que faço nascer<br />dos versos<br />a que livremente me condeno