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" Pelo menos num sentido, contudo, toda a literatura é acção cívica: por ser memória. Toda a literatura preserva algo que, de outra forma, morreria no mesmo instante em que morrem a carne e os ossos do escritor. Ler é reclamar o direito a essa imortalidade humana, porque a memória da escrita é abrangente e ilimitada. Individualmente, os seres humanos lembram-se de pouca coisa: até memórias extraordinárias, como as de Ciro, rei dos persas, capaz de nomear cada soldado nos seus exércitos, nada são quando comparadas com os volumes que enchem as bibliotecas. Os nossos livros são relatos das nossas Histórias: das nossas epifanias e das nossas atrocidades. Nesse sentido, toda a literatura é testemunhal. Mas, entre os testemunhos, há reflexões acerca das tais epifanias e atrocidades, palavras que oferecem essas epifanias para que outros as partilhem, e palavras que envolvem e denunciam as atrocidades de tal modo que não se permita que ocorram em silêncio. São recordações de coisas melhores, de esperança, consolo e compaixão, e mostram que também delas somos, todos nós, capazes. Não alcançamos todas, nem qualquer delas, a todas as horas. Mas a literatura lembra-nos que elas existem, essas qualidades humanas, a seguir aos nossos horrores, tão certas como ao nascimento sucede a morte. Também elas nos definem. Claro que a literatura talvez não seja capaz de salvar ninguém da injustiça, nem das tentações da cobiça, nem das misérias do poder. Mas algo nela tem de ser perigosamente eficaz, se todos os ditadores, todos os governos totalitários, todos os funcionários ameaçados tentam livrar-se dela, queimando livros, proibindo livros, censurando livros, tributando livros, defendendo com palavras ocas a causa da literacia, insinuando que ler é uma actividade elitista. "

Alberto Manguel , Packing My Library: An Elegy and Ten Digressions


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Alberto Manguel quote : Pelo menos num sentido, contudo, toda a literatura é acção cívica: por ser memória. Toda a literatura preserva algo que, de outra forma, morreria no mesmo instante em que morrem a carne e os ossos do escritor. Ler é reclamar o direito a essa imortalidade humana, porque a memória da escrita é abrangente e ilimitada. Individualmente, os seres humanos lembram-se de pouca coisa: até memórias extraordinárias, como as de Ciro, rei dos persas, capaz de nomear cada soldado nos seus exércitos, nada são quando comparadas com os volumes que enchem as bibliotecas. Os nossos livros são relatos das nossas Histórias: das nossas epifanias e das nossas atrocidades. Nesse sentido, toda a literatura é testemunhal. Mas, entre os testemunhos, há reflexões acerca das tais epifanias e atrocidades, palavras que oferecem essas epifanias para que outros as partilhem, e palavras que envolvem e denunciam as atrocidades de tal modo que não se permita que ocorram em silêncio. São recordações de coisas melhores, de esperança, consolo e compaixão, e mostram que também delas somos, todos nós, capazes. Não alcançamos todas, nem qualquer delas, a todas as horas. Mas a literatura lembra-nos que elas existem, essas qualidades humanas, a seguir aos nossos horrores, tão certas como ao nascimento sucede a morte. Também elas nos definem. Claro que a literatura talvez não seja capaz de salvar ninguém da injustiça, nem das tentações da cobiça, nem das misérias do poder. Mas algo nela tem de ser perigosamente eficaz, se todos os ditadores, todos os governos totalitários, todos os funcionários ameaçados tentam livrar-se dela, queimando livros, proibindo livros, censurando livros, tributando livros, defendendo com palavras ocas a causa da literacia, insinuando que ler é uma actividade elitista.