1
" A bala é o signo do distanciamento, da impessoalidade. Matar alguém a tiro é como matar um rato com uma ratoeira: facilita a indiferença. A faca, não. Ela torna tudo mais pessoal. Sua própria força no golpe, a percepção da lâmina rasgando a pele, dilacerando os órgãos do outro. Você sente agora a contração súbita dos músculos, enquanto torce a lâmina lá dentro só para aumentar a agonia, garantir a dor. Vê o sangue jorrar e cobrir sua mão firme, segurando o cabo, já em contato com a pele do abdome, a lâmina penetrando uns treze centímetros estômago adentro. O sangue escuro e de cheiro metálico — quente, você sabe, embora não sinta o calor porque está de luvas (não é nenhum idiota do tipo que se arrisca a deixar rastros). "
― ,
2
" Quando as coisas ao nosso redor perdem o sentido, é mais fácil atribuí-lo a absurdos. Foi o que acabei compreendendo. O problema de justificar insanidades é que nelas sempre encontramos o prazer mais sombrio de nossos primórdios esquecidos, aquele tempo em que não era permitido se iludir, em que não se devia olvidar por um instante sequer do que éramos: que éramos animais selvagens, violentos e traiçoeiros. Ainda somos, todos. Infelizmente, menos sob o véu da razão, que poderia melhor entender a natureza da criatura e mantê-la acorrentada, do que debaixo desse moralismo hipócrita e cínico da civilidade cotidiana. Sim, eu entendi. No final. "
― ,
4
" O céu noturno é uma lembrança de que, no universo, há menos luz do que escuridão. Ali, a luz parece apenas resistir (insistente em resistir) à opressão daquele espaço negro, vazio. Por isso, nos corpos celestes luminosos ou nos que refletem a luminosidade de outros, depositamos significados místicos, religiosos, mitológicos e científicos. Por isso lhes damos nomes. Próprios e comuns. Ao imenso fundo negro e vazio do espaço, porém, geralmente ignoramos. Nem sequer sabemos bem do que o chamar. Não o identificamos com uma palavra de conhecimento popular que o categorize, como planeta ou estrela, nem lhe damos um nome distintivo, como Saturno. Ainda assim, a escuridão está lá. Maior do que todo o resto. "
― ,
7
" O tempo resolve tudo, porque o tempo não resolve nada. Ele passa e mostra que os problemas só mudam de origem, de endereço ou de dono, mas perduram, resistem, continuam por aí. Em meio a isso, se as pessoas passaram e ainda passam tanto tempo de suas vidas temendo ou cultuando o Mal, como fosse uma coisa real, de fato existente, é apenas porque é verdade. É preciso entender. Resignar-se. O Mal existe. Existe e persiste. Imutável, invencível, eterno enquanto dura — e nisto nunca haverá poesia, pois não há alternativa, e os versos são sempre o caminho outro. O equívoco (pois há sim um grande equívoco) está só em pensar que o Mal exista fora de nós. Pois ali fora, quando o avistamos, ele não passa de reflexo de nossas entranhas projetado no mundo. "
― ,