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1 " Escrever não é mais do que esperar com esperança e sonhar com esperança. A expectativa de algo melhor. Quando eu imagino, sonho e escrevo no papel, estou a criar um mundo novo e posso fazer dele o que quiser. O nosso frágil corpo humano pode estar velho, fraco, ou mesmo jovem e adoentado, mas os sonhos, ninguém nos pode tirar". "
― Carina Rosa
2 " Forçou-se a não pensar nas noites em que, ainda acordada, ouvia a porta bater com força, mesmo depois de a ter trancado. As janelas anteriormente seladas abanavam num som estridente e ouvia passos nas escadas. Recordava-se de uma noite sentir uma mão a agarrar-lhe o braço com uma força que lhe parecia ter deixado marca nos dias seguintes. Abriu os olhos e não viu ninguém, mas o cheiro dele estava lá. Um cheiro inconfundível. A cadeira de balouço posicionada ao lado do sofá movimentava-se sem que ninguém lá se sentasse. Forçou-se a esquecer as vozes que sussurravam aos seus ouvidos. A televisão que se ligava a meio da noite num som absurdo. Não lhe contaria nada daquilo. Não lhe diria que estava louca. Não agora". "
― Carina Rosa , O Intruso
3 " Já não ouvia o som do motor da mota de Hugo a rugir, lá em baixo, nem as suas mãos fortes a enfiar a chave na fechadura, e muito menos ouvia quaisquer pancadas na porta de madeira ou os seus gritos furiosos. Não havia passado nesse instante, nem medo, nem tormento. Santiago levava-a a esquecer tudo isso, o príncipe do seu palácio e do seu mundo cor-de-rosa. Só uma coisa não podia ser esquecida, mas já a esquecera, entretanto. As cartas de Hugo continuavam escondidas por baixo do assento do sofá e fora ela própria a escondê-las. Porque é que o fizera? Para quem? Para si mesma ou para o marido? Pouco importava. Só o gesto já era uma mentira e uma traição e não sabia o que faria quando voltasse a recordar-se delas outra vez e daquilo que a esperava. E muito menos sabia o que faria quando voltasse a esquecer as cartas e Hugo, porque quando o fizesse, jamais se recordaria de retirar as missivas debaixo do assento do sofá e o marido iria descobrir todas as suas mentiras, antes que ela lhas pudesse revelar "
― Carina Rosa , A Sombra de um Passado
4 " Se conseguisse aguentar o peso do próprio corpo, levantar-se-ia e caminharia pelas águas do mar até perder o pé e deixar-se afogar, mas tudo o que conseguia fazer era arrastar-se pela areia fora e desejar que o mar fosse buscá-lo. Estava com sorte. As ondas pareciam ouvir-lhe as preces e tornaram-se fortes demais, batendo-lhe com uma força brutal no corpo e no rosto adormecidos. De repente, sentia-se leve como uma pena, banhado pelas águas frias e hipnotizantes. Teve quase a certeza de ouvir o canto das sereias a puxá-lo com uma força inimaginável para dentro das águas do mar e foi incapaz de resistir. Não sabia quem era, nem onde estava, quando se deixou levar pela corrente, agarrado a um pedaço de areia que seria a última recordação de uma praia e de um amor esquecido. A última recordação de Clara, de Carolina ou do palácio inacabado, cuja história ficaria sempre por escrever". "
5 " Teresa sentiu o seu ritmo cardíaco acelerar e o calor que emanava da pele da mão do estranho espalhar-se pela sua tez, do ombro que ele ainda acariciava ao peito e ao ventre. A túnica vermelha que envergava estava desconcertada sobre o corpo dorido, deixando-lhe à vista o ombro acarinhado, e Teresa nunca se sentira tão bem e tão mal ao mesmo tempo. Tivera um pesadelo terrível durante os instantes em que estivera inconsciente e agora o sonho parecia cumprir-se. À medida que os seus olhos lhe iam focando o rosto, ela ganhava certezas. Pousou os seus olhos escuros nos dele e viu aquilo que jamais pensara voltar a ver. Dois grandes olhos verdes, com uma pequena mancha castanha, e muito invulgar, no direito".«Sonhos malditos» "
― Carina Rosa , Sonhos malditos
6 " Era o último dia do ano e para muitos, o único que realmente importava. Tudo o que não fora feito durante o ano, transformar-se -ia num novo desejo, quando a meia-noite fosse anunciada e as passas consumidas de forma pensativa. Brindavam ao ano e à vida que deixavam para trás, dando as boas novas a um ano diferente, com novos conhecimentos, novos projectos e novas aventuras. E por um motivo que ainda não sabia descodificar, ninguém queria estar sozinho na última noite do ano. Era um dia como tantos outros, apenas com a diferença de um número no final do calendário, mas estar sozinho naquela noite era como um mau presságio para o ano que se avizinhava. "
― Carina Rosa , As Gotas de um Beijo
7 " Abrandou o passo de corrida até parar por completo, escondendo-se na penumbra da noite com a respiração entrecortada de cansaço, uma réstia de fúria e um súbito pânico que ela lhe provocou. Também Mariana estava escondida na escuridão, mas ele sabia que se veriam, mesmo antes de se verem. Já se tocavam, sem se tocarem, e o seu olhar já se cruzava, mesmo sem se ter encontrado. Era como uma linha de comboio, dolorosamente perigosa, mas estranhamente sedutora. Sabia que pôr os pés nessa linha seria um risco de morte, mas não havia forma de saltar para fora, quando ela estava parada, à sua frente, a implorar-lhe que se aproximasse. E num segundo de luz e de vida, o comboio iluminou a linha férrea e ele viu-lhe os olhos claros a encontrarem os seus. E sorriu, verdadeiramente, pela primeira vez em muitos dias, mesmo sabendo que esse encontro, no meio da linha, seria morte na certa". "
― Carina Rosa , O Escultor