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1 " A biblioteca é vasta e antiga, os livros mortos nas estantes sem esperança de voltarem a viver. São fantasmas com milhares de palavras que jazem em repouso. "
― Nuno Camarneiro , Debaixo de Algum Céu
2 " O medo nasce em qualquer lugar, como erva daninha por dentro. O medo suporta tudo e cresce no escuro até ser adulto, até ser do tamanho de um homem, e lhe tomar o corpo e pensar por ele. "
3 " Um eco que é o som depois do som, quando já tudo se calou mas as almas ainda cantam. "
4 " Há depois quem viva para os outros, e são os que morrem melhor, porque a vida que têm não é já sua mas foi espalhada por quem dela se valeu. "
5 " O problema é desenhar a vida em forma de montanha, dar um cume à vida e querer atingi-lo como se o seu sentido dependesse desse acto. O sentido da vida, a existir, há-de ser como o sentido de uma montanha, e não muda por lhe chegarmos ao topo ou nos perdermos pelas encostas. "
6 " Há homens tristes e homens alegres e há também homens velhos. A idade é um caldo frio de emoções passadas, sabores e aromas que se propõem ao acaso na memória dos velhos. O tempo gasta tudo o que roça, pedras e corpos, a todos o tempo arredonda as arestas como se lhes combatesse as formas. O tempo vai-nos mastigando para que a morte nos ache tenros e dóceis. Também a morte é uma senhora antiga com dentes cansados de roer. "
― Nuno Camarneiro , No Meu Peito Não Cabem Pássaros
7 " Quantos de nós descremos da vida e andamos nela como numa escada rolante que não nos importa subir? Quantos de nós fingimos o amor sem sabermos que o amor é coisa de acreditar e viver nele, de não pensar, de não questionar, de não pesar nem medir, coisa que não tem preço ou um valor que se possa trocar? "
8 " Não é o sentido da vida que me preocupa, mas o meu sentido na vida. "
9 " O amor não é fácil em nenhuma idade e dói tanto ceder-lhe como fugir-lhe. "
10 " Há uma idade a partir da qual nenhuma realidade supera a memória, por isso os velhos falam pouco e ficam horas virados para dentro, por isso se deitam cedo e esperam o sono como um amigo antigo. "
11 " (...) para se reconhecer um louco, têm de se lhe conhecer os hábitos ou corre-se o risco de o confundir com um homem. "
12 " Viver como quem passeia cá por baixo, distraído de um universo aonde se há-de voltar em alguma hora, até que sopre um frio de fim de tarde e uma voz chame para dentro, «vamos, que vem noite». "
13 " Somos tolos e sentimentais, temos arcas cheias de mágoas que não esquecemos e que abrimos a todo o momento para ver se ainda nos doem, e doem sempre. Descuramos o arquivo do bem que apesar de tudo nos vai acontecendo, somos tolos de lágrimas. "
14 " - Vai um pássaro a voar baixinho, tia, é lindo e vai perdido a voar. Aqui não é céu de pássaros. Tenho muito calor dentro de mim, tia, tenho calor e falta-me o ar. Leve o pássaro para a rua, lá para onde puder voar. No meu peito não cabem pássaros. "
15 " Como pode alguém domar a poesia? Um poeta é apenas um lugar por onde o poema passa. "
16 " Fernando sabe o que teme, conhece o seu inimigo, que se veste de cinzento e anda de mão dada com toda a gente. O inimigo de Fernando é agradável, consensual, ligeiro. O seu inimigo é o agradável, o consensual, o ligeiro e todas as outras formas de nada que são modos de saltar do berço à cova sem importar a ninguém e muito menos a si próprio. Disfarçado no banal, será finalmente livre de ser qualquer coisa escondida, a sombra imensa de um funcionário que funciona. "
17 " As mulheres em particular saio engenhos de multiplicar homens, são todas feitas de bívios as mulhers, artista de povoar mesmo sem prenhez, basta-lhes falar ou ser, no resto pensam eles: falo-lhe ou não falo? Beijo-a ou não beijo? São irremediáveis e estúpidos os homens, se se aguentam na vida é mais por privilégios de género que por competência, os homens são idiotas carregados de sementes. "
18 " No mesmo corredor mora outro homem, outro sono, o mesmo não acordar como quem furta ao tempo alguns minutos. Quem nunca quis dormir até a vida ser um lugar praticável, quem não conhece o desconsolo de vestir cada dia uma pele curta nas mangas, que vá abanar este homem, que o chame com a voz cheia de realidades e diga: «Levanta-te, Karl, levanta-te à hora de viver.» "
19 " Quando alguém conta um dia ou uma vida está a calar quase tudo, as vidas são imensas e não se podem contar só por palavras. Haveria que inventar artes de encher o silêncio e de descobrir nele o peso certo do que somos. O que se é só se pode encontrar no que não é dito, nas culpas deixadas dentro, nos castigos que se vão escolhendo. "
20 " David pensa que o problema das ideias é que se assemelham demasiado a animais que se levam para casa; temos projectos para elas, esperamos que vão buscar o que atiramos, que se deitem a aquecer-nos os pés, que se virem de barriga para cima para que as acariciemos. Mas as ideias, como um cão, às vezes correm por onde querem e levam-nos atrás porque também nós lhes pertencemos. "