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1 " No entanto, a minha suprema ambição - o meu ideal inatingível até porque ideal, mas sempre presente como um limite - é a de um simples mineral, com a sua impassibilidade e a sua adesão à terra, a que acabarei por voltar não só por condição como por desejo profundamente, longamente sentido e só satisfeito no dia em que a minha voz passar a ser a voz da terra, mais importante, no fundo, do que todas as palavras que me houver sido dado proferir à sua superfície (...). "
― Ruy Belo , Aquele Grande Rio Eufrates
2 " As velas da memóriaHá nos silvos que as manhãs me trazemchaminés que se desmoronam:são a infância e a praia os sonhos de partidaAbrir esse portão junto ao vento que a vidaaquém ou além desta me abre?Em que outro mundo ouvi o rouxinoltão leve que o voo lhe aumentava as asas?Onde adiava ele a morte contra os diasessa primeira morte?Vinham núpcias sem conto na inconcebível vozQue plenitude aquela: cantarcomo quem não tivesse nenhum pensamento.Quem me deixou de novo aqui sentado à sombradeste mês de junho? Como te chamas tuque me enfunas as velas da memória ventilando: «aquela vez...»?Quando aonde foi em que país?Que vento faz quebrar nas costas destes diasas ondas de uma antiga música que ouvidaobriga a recuar a noite prometidaem círculos quebrados para além das dunasfazendo regressar rebanhos de alegriasabrindo em plena tarde um espaço ao amor?Que morte vem matar a lábil curva da dor?Que dor me faz doer de não ter mais que morrer?E ouve-se o silêncio descer pelas vertentes da tardechegar à boca da noite e responder "
3 " PovoamentoNo teu amor por mim há uma rua que começa Nem árvores nem casas existiam antes que tu tivesses palavras e todo eu fosse um coração para elas Invento-te e o céu azula-se sobre esta triste condição de ter de receber dos choupos onde cantam os impossíveis pássaros a nova primavera Tocam sinos e levantam voo todos os cuidados Ó meu amor nem minha mãe tinha assim um regaço como este dia tem E eu chego e sento-me ao lado da primavera "
― Ruy Belo
4 " Ah, poder ser tu, sendo eu!Ei-lo que avançade costas resguardadas pela minha esperançaNão sei quem é. Leva consigoalém do sob o braço o jornala sedução de ser seja quem foraquele que não souE vai não sei ondevisitar não sei quemSinto saudades de alguémlido ou sonhado por mimem sítios onde não estiveHá uma parte de mim que me abandonae me edifica nesse vulto quecheio de ser visto por mimé o maior acontecimentoda tarde de domingoEi-lo que avança e desapareceE estou de novo comigosobre o asfalto onde quero estar "
5 " O Portugal FuturoO portugal futuro é um paísaonde o puro pássaro é possívele sobre o leito negro do asfalto da estradaas profundas crianças desenharão a gizesse peixe da infância que vem na enxurradae me parece que se chama sávelMas desenhem elas o que desenharemé essa a forma do meu paíse chamem elas o que lhe chamaremportugal será e lá serei felizPoderá ser pequeno como esteter a oeste o mar e a espanha a lestetudo nele será novo desde os ramos à raizÀ sombra dos plátanos as crianças dançarãoe na avenida que houver à beira-marpode o tempo mudar será verãoGostaria de ouvir as horas do relógio da matrizmas isso era o passado e podia ser duroedificar sobre ele o portugal futuro "
― Ruy Belo , Homem de Palavra[s]
6 " Ah! Eu queria mudar mas mudar principalmente de mimdeixar o ser incómodo onde tudo me acontecee ser não outra coisa ser a própria mudançaficar nesse mudar com a possível estabilidadein Estudo "
7 " Tu estás aquiEstás aqui comigo à sombra do solescrevo e oiço certos ruídos domésticose a luz chega-me humildemente pela janelae dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que souEstás aqui comigo e sou sumamente quotidianoe tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijamaque uso para ser também isto este bichode hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitosquando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem o que sei oque faço ou então sou eu que julgo que o sabeme sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavrase sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou outra coisaesta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exteriora manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que façobem entendido o que faço com este braçoEstás aqui comigo e à volta são as paredese posso passar de sala para sala a pensar noutra coisae dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banhoe no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazerEstás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigadopassado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredesesta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisaessa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do solEstás aqui e sinto-me absolutamente indefeso diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nomeeste meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutronome embora no mesmo nome este nomede terra de dor de paredes este nome domésticoAfinal fui isto nada mais do que istoas outras coisas que fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular istoa que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nomeque não merdae em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa dasoutras coisas Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisauma coisa para além disto que não isto Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigoé das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticostu és em cada gesto todos os teus gestose neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como a palavra pazDeixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugasperdoa pagares tão alto preço por estar aqui perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aquiprossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presentedeixa docemente desvanecerem-se um por um os diase eu saber que aqui estás de maneira a poder dizersou isto é certo mas sei que tu estás aqui "
― Ruy Belo , Toda a Terra