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" So frigid my legs and my arms and my face that I thought of opening the bottle to have a sip, but I didn't want to get to his house half drunk, breath stinking, I didn't want him to think that I'd been drinking, and I had been, every day a good excuse, and I was also thinking that he would think I was broke, arriving on foot in all that rain, and I was, stomach aching with hunger, and I didn't want him to think I hadn't been sleeping, and I hadn't, dark circles under my eyes, I would have to be careful with my lower lip when smiling, if I smiled, and I almost certainly would, when I saw him, so that he wouldn't see the broken tooth and think I'd been letting myself go, and I had been, avoiding the dentist, and I had been, and everything I'd done and been that I didn't want him to see or know, but thinking that gave me a heartache because I was realizing, in the rain, that maybe I didn't want him to know that I was me, and I was. "
― Caio Fernando Abreu , Morangos Mofados
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" Don't forget to send me a postcard from Sri Lanka, that murky river, that olive skin, may something very beautiful happen to you, I wish you a lot of faith, in anything, it doesn't matter what, like that faith we once had, wish me something very beautiful too, anything wonderful, anything that makes me believe in anything again, that makes us believe in everyone again, that takes away this rotten taste of failure from my mouth, of defeat with no grandeur, there's no way, companheiro, we got lost in the middle of the road and we never had a map, no one gives rides anymore and the night is about to fall. "
― Caio Fernando Abreu , Morangos Mofados
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" The truth is, there was no one else around. Months later, not at first, one of them would say that the office was a “desert of souls.” The other one agreed, smiling, proud that he wasn’t included in that description. And little by little, between beers, they came to share sour stories about unloved and hungry women, then soccer banter, secret Santa, wish lists, fortunetellers’ addresses, a bookie, Jogo do bicho, cards for the punch clock, the occasional pastry after work, cheap champagne in plastic cups. In a desert of souls that were also deserts, one special soul immediately recognizes another—maybe for that reason, who knows? But neither of them wondered. "
― Caio Fernando Abreu , Morangos Mofados
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" Tenho um dragão que mora comigo.
Não, isso não é verdade.
Não tenho nenhum dragão. E, ainda que tivesse, ele não moraria comigo nem com ninguém. Para os dragões, nada mais inconcebível que dividir seu espaço - seja com outro dragão, seja com uma pessoa banal feito eu. Ou invulgar, como imagino que os outros devam ser. Eles são solitários, os dragões. Quase tão solitários quanto eu me encontrei, sozinho neste apartamento, depois de sua partida. Digo quase porque, durante aquele tempo em que ele esteve comigo, alimentei a ilusão de que meu isolamento para sempre tinha acabado. E digo ilusão porque, outro dia, numa dessas manhãs áridas da ausência dele, felizmente cada vez menos freqüentes (a aridez, não a ausência), pensei assim: Os homens precisam da ilusão do amor da mesma forma que precisam da ilusão de Deus. Da ilusão do amor para não afundarem no poço horrível da solidão absoluta; da ilusão de Deus, para não se perderem no caos da desordem sem nexo.
Isso me pareceu grandiloqüente e sábio como uma ideia que não fosse minha, tão estúpidos costumam ser meus pensamentos. E tomei nota rapidamente no guardanapo do bar onde estava. Escrevi também mais alguma coisa que ficou manchada pelo café. Até hoje não consigo decifrá-la. Ou tenho medo da minha - felizmente indecifrável - lucidez daquele dia. "
― Caio Fernando Abreu , Os Dragões não Conhecem o Paraíso
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" Tinha mudado, percebi. Não apenas pelas rugas nos cantos dos olhos verdes, nem pelos vincos mais fundos ao lado da boca. Seus maxilares haviam perdido a dureza, o orgulho, e desaparecera do sorriso de lábios finos aqulea expressão de cinismo, ironia, certa crueldade. Uma mulher de pouco mais de cinquenta anos, cara lavada, um vestido amarelo claro de algodão, sandálias nos pés pequenos, de unhas sem pintura. Não era mais bela, tornara-se outra coisa, mais que isso - talvez real. "
― Caio Fernando Abreu , Onde Andará Dulce Veiga?: Um Romance B
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" Eu quis tanto ser a tua paz, quis tanto que você fosse o meu encontro. Quis tanto dar, tanto receber. Quis precisar, sem exigências. E sem solicitações, aceitar oq ue me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria pedir mais do que você tinha, assim como eu não daria mais do que dispunha, por limitação humana. Mas o que tinha, era seu. A noite ultrapassou a si mesma, encontrou a madrugada, se desfez em manhã, em dia claro, em tarde verde, em anoitecer e em noite outra vez. Fiquei. Você sabe que eu fiquei. E que ficaria até o fim, até o fundo. Que aceitei a queda, que aceitei a morte. Que nessa aceitação, caí. Que nessa queda, morri. Tenho me carregado tão perdido e pesado pelos dias afora. E ninguém vê que estou morto. "
― Caio Fernando Abreu , Inventário do ir-remediável