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" Eu a havia desconcertado.
– Sonhei com uma anã que tinha um espinho cravado no coração.
– Mas qual anã?
– Uma anã.. uma anãnãnã… nuãnãnããnã…
“Qual” estava fora de questão… Minha manobra consistia em lhe dar a entender que eu tinha algo “difícil” a expressar. Devia recorrer à indireta, à alegoria, à ficção pura e simples. E ela se via arrastada a isso também, a investigar essa sutileza… que lhe escapava… E então comecei a mentir com a verdade (e viceversa), não sei como… Também me escapava… Minhas estratégias morriam em
minhas mãos… mas ressuscitavam agigantadas… No desespero de se fazer entender numa matéria indócil por uma menininha completamente estupidificada pela miséria física, Ana Módena começou a se auxiliar com gestos… o gesto tomava a dianteira… Era uma mulher precipitada, sem método: caiu na armadilha da intuição que voa às cegas e atinge o alvo antes que o entendimento possa começar a funcionar… E a pressa, a falta de habilidade, fizeram todos os gestos se jogarem uns por cima dos outros… por sua vez. Pela minha, o desmembramento me fazia gesticular em espelho… mas era uma vertigem, a acumulação de significados das caretas e olhares e entonações se tornava excessiva… parecia se aproximar de um limite, de um umbral… se aproximava mais e mais… "

César Aira , Cómo me hice monja / La costurera y el viento


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César Aira quote : Eu a havia desconcertado.<br />– Sonhei com uma anã que tinha um espinho cravado no coração.<br />– Mas qual anã?<br />– Uma anã.. uma anãnãnã… nuãnãnããnã…<br />“Qual” estava fora de questão… Minha manobra consistia em lhe dar a entender que eu tinha algo “difícil” a expressar. Devia recorrer à indireta, à alegoria, à ficção pura e simples. E ela se via arrastada a isso também, a investigar essa sutileza… que lhe escapava… E então comecei a mentir com a verdade (e viceversa), não sei como… Também me escapava… Minhas estratégias morriam em<br />minhas mãos… mas ressuscitavam agigantadas… No desespero de se fazer entender numa matéria indócil por uma menininha completamente estupidificada pela miséria física, Ana Módena começou a se auxiliar com gestos… o gesto tomava a dianteira… Era uma mulher precipitada, sem método: caiu na armadilha da intuição que voa às cegas e atinge o alvo antes que o entendimento possa começar a funcionar… E a pressa, a falta de habilidade, fizeram todos os gestos se jogarem uns por cima dos outros… por sua vez. Pela minha, o desmembramento me fazia gesticular em espelho… mas era uma vertigem, a acumulação de significados das caretas e olhares e entonações se tornava excessiva… parecia se aproximar de um limite, de um umbral… se aproximava mais e mais…