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" O tempo desapareceu; é a Eternidade que reina, uma eternidade de delícias!
Mas uma batida terrível, pesada, fez estremecer a porta e, como em um pesadelo infernal, senti ter levado uma agulhada na boca do estômago.
E em seguida um Espectro entrou. Um funcionário que vem me torturar em nome da lei; uma concubina infame que vem chorar misérias e acrescentar as trivialidades da sua vida às dores da minha; ou ainda o faz-tudo enviado pelo diretor do jornal a exigir a entrega do manuscrito.
O quarto paradisíaco, o ídolo, a soberana dos sonhos, a Sílfide, como dizia o grande René, toda essa magia desapareceu com a batida brutal do Espectro.
Que horror! Agora lembro, lembro! Sim! Esse pardieiro, residência do tédio eterno, é bem o meu. Aí está a mobília vulgar, coberta de pó, lascada;
a lareira sem chama e sem brasa, imunda de escarros: as melancólicas janelas em que a chuva cavou sulcos na poeira; os manuscritos, riscados ou incompletos; o calendário onde o lápis ressaltou as datas fatídicas!
E esse perfume de outro mundo, no qual eu me embriagava com uma refinada sensibilidade, ai de mim! Foi substituído pelo cheiro fedorento de tabaco misturado a sabe-se lá que tipo de mofo. Respira-se já aqui o ranço da desolação.
Nesse mundinho pequeno, mas farto de desgosto, só um objeto conhecido me sorri: a garrafinha de láudano; velha e espantosa amiga;
como todas as amigas, aliás! Fértil em carícias e traições.
Ah, sim! O Tempo está de volta, o Tempo reina agora soberano; e junto com o velho repugnante retornou o seu cortejo demoníaco de Lembranças, de Arrependimentos, de Espasmos, de Medos, de Angústias, de Pesadelos, de Cóleras, de Neuroses.
Eu lhes asseguro que todos os segundos são agora forte e solenemente acentuados, e cada um deles, brotando do pêndulo, diz:
– Sou a Vida, insuportável, implacável! "

Charles Baudelaire , Paris Spleen


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Charles Baudelaire quote : O tempo desapareceu; é a Eternidade que reina, uma eternidade de delícias!<br />Mas uma batida terrível, pesada, fez estremecer a porta e, como em um pesadelo infernal, senti ter levado uma agulhada na boca do estômago.<br />E em seguida um Espectro entrou. Um funcionário que vem me torturar em nome da lei; uma concubina infame que vem chorar misérias e acrescentar as trivialidades da sua vida às dores da minha; ou ainda o faz-tudo enviado pelo diretor do jornal a exigir a entrega do manuscrito.<br />O quarto paradisíaco, o ídolo, a soberana dos sonhos, a Sílfide, como dizia o grande René, toda essa magia desapareceu com a batida brutal do Espectro.<br />Que horror! Agora lembro, lembro! Sim! Esse pardieiro, residência do tédio eterno, é bem o meu. Aí está a mobília vulgar, coberta de pó, lascada;<br />a lareira sem chama e sem brasa, imunda de escarros: as melancólicas janelas em que a chuva cavou sulcos na poeira; os manuscritos, riscados ou incompletos; o calendário onde o lápis ressaltou as datas fatídicas!<br />E esse perfume de outro mundo, no qual eu me embriagava com uma refinada sensibilidade, ai de mim! Foi substituído pelo cheiro fedorento de tabaco misturado a sabe-se lá que tipo de mofo. Respira-se já aqui o ranço da desolação.<br />Nesse mundinho pequeno, mas farto de desgosto, só um objeto conhecido me sorri: a garrafinha de láudano; velha e espantosa amiga;<br />como todas as amigas, aliás! Fértil em carícias e traições.<br />Ah, sim! O Tempo está de volta, o Tempo reina agora soberano; e junto com o velho repugnante retornou o seu cortejo demoníaco de Lembranças, de Arrependimentos, de Espasmos, de Medos, de Angústias, de Pesadelos, de Cóleras, de Neuroses.<br />Eu lhes asseguro que todos os segundos são agora forte e solenemente acentuados, e cada um deles, brotando do pêndulo, diz:<br />– Sou a Vida, insuportável, implacável!