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" O mesmo acontece quando alguma cruel cilada do acaso impede o nosso inteligente e piedoso afeto de acorrer a tempo para ocultar a nossos olhares o que jamais devem contemplar, quando aquele é ultrapassado por estes, que, chegando primeiro e entregues a si mesmos, funcionam mecanicamente, à maneira de uma película, e nos mostram, em vez da criatura amada que já não existe desde muito, mas cuja morte o nosso afeto jamais quisera que nos fosse revelada, a nova criatura que cem vezes por dia ele revestia de uma querida e enganosa aparência. E como um enfermo que a si mesmo não via desde muito tempo, e que, compondo, a cada instante, o rosto, que ele não vê, segundo a imagem ideal que forma de si mesmo em pensamento, recua ao avistar no espelho, em meio de um rosto árido e deserto, a proeminência oblíqua e rósea de um nariz gigantesco como uma pirâmide do Egito, eu, para quem minha avó era ainda eu próprio, eu que jamais a vira a não ser em minh’alma, sempre no mesmo ponto do passado, através da transparência de recordações contíguas e superpostas, de súbito, em nosso salão que fazia parte de um mundo novo, o do tempo, o mundo em que vivem os estranhos de quem se diz “como envelheceu!”, eis que pela primeira vez e tão só por um instante, pois ela desapareceu logo, avistei no canapé, congestionada, pesada e vulgar, doente, cismando, a passear acima de um livro uns olhos, um olhar um pouco extraviado, a uma velha consumida que eu não conhecia. "

Marcel Proust , The Guermantes Way


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Marcel Proust quote : O mesmo acontece quando alguma cruel cilada do acaso impede o nosso inteligente e piedoso afeto de acorrer a tempo para ocultar a nossos olhares o que jamais devem contemplar, quando aquele é ultrapassado por estes, que, chegando primeiro e entregues a si mesmos, funcionam mecanicamente, à maneira de uma película, e nos mostram, em vez da criatura amada que já não existe desde muito, mas cuja morte o nosso afeto jamais quisera que nos fosse revelada, a nova criatura que cem vezes por dia ele revestia de uma querida e enganosa aparência. E como um enfermo que a si mesmo não via desde muito tempo, e que, compondo, a cada instante, o rosto, que ele não vê, segundo a imagem ideal que forma de si mesmo em pensamento, recua ao avistar no espelho, em meio de um rosto árido e deserto, a proeminência oblíqua e rósea de um nariz gigantesco como uma pirâmide do Egito, eu, para quem minha avó era ainda eu próprio, eu que jamais a vira a não ser em minh’alma, sempre no mesmo ponto do passado, através da transparência de recordações contíguas e superpostas, de súbito, em nosso salão que fazia parte de um mundo novo, o do tempo, o mundo em que vivem os estranhos de quem se diz “como envelheceu!”, eis que pela primeira vez e tão só por um instante, pois ela desapareceu logo, avistei no canapé, congestionada, pesada e vulgar, doente, cismando, a passear acima de um livro uns olhos, um olhar um pouco extraviado, a uma velha consumida que eu não conhecia.