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" «Conversaciones con la vaca»

Em Buenos Aires conheci um escritor argentino muito excêntrico que se chamava, ou chama, Omar Vignole. Ignoro se ainda vive. Era um homem grandote, sempre de grossa bengala na mão. Certo dia, num restaurante do centro, no qual me convidara para comer, já perto da mesa dirigiu-se a mim, com ar deferente, dizendo-me com um vozeirão que ecoou por toda a sala, repleta de fregueses: « Senta-te, Ornar Vignole!» Sentei-me com certo mal-estar e perguntei-lhe acto contínuo: «Porque me chamas Omar Vignole, ciente de que és tu Ornar Vignole e eu Pablo Neruda?» «Sim», respondeu-me, «mas neste restaurante há muitos que só me conhecem de nome e, corno vários deles querem dar-me uma tareia, eu prefiro que a dêem a ti.»
Vignole fora agrónomo numa província argentina e trouxera de lá uma vaca com a qual mantinha amizade entranhada. Passeava por Buenos Aires inteira com a sua vaca presa a uma corda. Publicou então alguns livros, que tinham sempre títulos alusivos: Lo que piensa la vaca, Mi vaca y yo, etc., etc. Quando se reuniu pela primeira vez naquela cidade o congresso do Pen Club mundial, os escritores, presididos por Victoria Ocampo, tremiam ante a ideia de ver Vignole chegar ao congresso com a vaca. Explicaram às autoridades o perigo que os ameaçava e a polícia isolou as ruas em torno do Hotel Plaza a fim de evitar a entrada, no luxuoso recinto onde decorria o congresso, do meu excêntrico amigo com o ruminante. Tudo foi inútil. Quando a festa estava no auge e os escritores examinavam as relações entre o mundo clássico dos Gregos e o sentido moderno da história, o grande Vignole irrompeu na sala de conferências com a sua inseparável vaca, que para mais começou a mugir como se pretendesse tomar parte no debate. Trouxera-a até ao centro da cidade dentro de uma enorme furgoneta fechada que iludiu a vigilância policial.
Dele contarei ainda que uma vez desafiou um lutador de catch as can. O profissional aceitou o desafio, e chegou a noite do encontro, num Luna Park repleto. O meu amigo apareceu pontualmente com a vaca, amarrou-a a uma esquina do quadrilátero, despiu um roupão elegantíssimo e enfrentou o «Estrangulador de Calcutá». Porém, de nada serviam ali a vaca, nem o sumptuoso atavio do poeta-lutador. O «Estrangulador de Calcutá» atirou-se a Vignole e em três tempos deixou-o transformado num nó indefeso, colocando-lhe, para mais, em sinal de humilhação, um pé sobre a garganta de touro literário, no meio da tremenda assuada de um público feroz que exigia a continuação do combate.
Poucos meses depois, publicou um novo livro: Conversaciones con la vaca. Jamais poderei esquecer a originalíssima dedicatória, impressa na primeira página da obra. Dizia, se bem me lembro: «Dedico este livro filosófico aos quarenta mil filhos da puta que me assobiaram e pediram a minha morte no Luna Park na noite de 24 de Fevereiro.» "

Pablo Neruda , Memoirs


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Pablo Neruda quote : «Conversaciones con la vaca»<br /><br />Em Buenos Aires conheci um escritor argentino muito excêntrico que se chamava, ou chama, Omar Vignole. Ignoro se ainda vive. Era um homem grandote, sempre de grossa bengala na mão. Certo dia, num restaurante do centro, no qual me convidara para comer, já perto da mesa dirigiu-se a mim, com ar deferente, dizendo-me com um vozeirão que ecoou por toda a sala, repleta de fregueses: « Senta-te, Ornar Vignole!» Sentei-me com certo mal-estar e perguntei-lhe acto contínuo: «Porque me chamas Omar Vignole, ciente de que és tu Ornar Vignole e eu Pablo Neruda?» «Sim», respondeu-me, «mas neste restaurante há muitos que só me conhecem de nome e, corno vários deles querem dar-me uma tareia, eu prefiro que a dêem a ti.»<br />Vignole fora agrónomo numa província argentina e trouxera de lá uma vaca com a qual mantinha amizade entranhada. Passeava por Buenos Aires inteira com a sua vaca presa a uma corda. Publicou então alguns livros, que tinham sempre títulos alusivos: Lo que piensa la vaca, Mi vaca y yo, etc., etc. Quando se reuniu pela primeira vez naquela cidade o congresso do Pen Club mundial, os escritores, presididos por Victoria Ocampo, tremiam ante a ideia de ver Vignole chegar ao congresso com a vaca. Explicaram às autoridades o perigo que os ameaçava e a polícia isolou as ruas em torno do Hotel Plaza a fim de evitar a entrada, no luxuoso recinto onde decorria o congresso, do meu excêntrico amigo com o ruminante. Tudo foi inútil. Quando a festa estava no auge e os escritores examinavam as relações entre o mundo clássico dos Gregos e o sentido moderno da história, o grande Vignole irrompeu na sala de conferências com a sua inseparável vaca, que para mais começou a mugir como se pretendesse tomar parte no debate. Trouxera-a até ao centro da cidade dentro de uma enorme furgoneta fechada que iludiu a vigilância policial.<br />Dele contarei ainda que uma vez desafiou um lutador de catch as can. O profissional aceitou o desafio, e chegou a noite do encontro, num Luna Park repleto. O meu amigo apareceu pontualmente com a vaca, amarrou-a a uma esquina do quadrilátero, despiu um roupão elegantíssimo e enfrentou o «Estrangulador de Calcutá». Porém, de nada serviam ali a vaca, nem o sumptuoso atavio do poeta-lutador. O «Estrangulador de Calcutá» atirou-se a Vignole e em três tempos deixou-o transformado num nó indefeso, colocando-lhe, para mais, em sinal de humilhação, um pé sobre a garganta de touro literário, no meio da tremenda assuada de um público feroz que exigia a continuação do combate.<br />Poucos meses depois, publicou um novo livro: Conversaciones con la vaca. Jamais poderei esquecer a originalíssima dedicatória, impressa na primeira página da obra. Dizia, se bem me lembro: «Dedico este livro filosófico aos quarenta mil filhos da puta que me assobiaram e pediram a minha morte no Luna Park na noite de 24 de Fevereiro.»